O "Divórcio na Bíblia"
O divórcio tem sido uma das questões mais complexas da atualidade. Muita gente tem receio de discutir o assunto, mas o tema precisa ser encarado
Segunda-feira, 13 de novembro de 2023
O divórcio tem sido uma das questões mais complexas da atualidade. Muita gente tem até receio de discutir o assunto abertamente. Todavia, não há como fugir. O tema precisa ser encarado. De um lado, muitos cristãos rejeitam todo e qualquer divórcio, sugerindo que alguém deve até mesmo viver para sempre com um cônjuge promíscuo (com o risco de vida/Aids). De outro lado, muitos liberais nem se importam com textos restritivos do Novo Testamento. Afirmam apenas que hoje os tempos são outros e que ninguém está obrigado a sofrer para sempre ao lado de quem não gosta. Diante da polarização, é preciso discutir a questão.
Para discutir o tema, não se pode diminuir a importância da teologia do casamento em Gênesis 2:18-24, na criação, e de Deuteronômio 24:1-4 (texto da permissão do divórcio no AT). Todavia, a direção clara sobre o divórcio em termos práticos aparece, sem dúvida, no Novo Testamento. Como é bem conhecido, os textos dos evangelhos sinóticos que tratam do assunto são: Mateus 5:31-32; Marcos 10:1-12; Lucas 16:16-18 e Mateus 19:1-12. Destes o mais detalhado e significativo é o texto de Mateus 19. Uma análise atenta desse texto irá nos mostrar os seguintes fatos:
1 - O divórcio era comum e fácil nos dias de Jesus.
2 - Jesus coloca o homem e a mulher em pé de igualdade. Entre os judeus da época nenhuma mulher podia divorciar-se de seu marido.
3 - Havia uma discussão entre os rabinos sobre o divórcio no tempo de Jesus. A questão era a interpretação das escola de Hillel e de Shamai. A primeira aceitava o divórcio por “qualquer motivo”, a segunda apenas por “algo indecente” (a partir de Dt 24:1-4). Jesus se posiciona do lado de Shamai, rejeitando o “qualquer motivo”.
4 - Jesus procura mostrar que Deus está mais interessado no casamento do que no divórcio. Por isso, volta a atenção da discussão para a teologia do casamento na criação. Sua postura é que o casamento é monogâmico e deve durar por toda a vida.
5 - É preciso dizer que a poligamia ainda era tolerada pelos judeus, pois o Antigo Testamento nunca a condenou.
6 - O pecado do divórcio, conforme Mateus 19, está relacionado com a quebra dos votos do casamento, isto é, infidelidade.
7 - A certidão de casamento dada pelo marido na ocasião da separação da mulher trazia uma frase que permitia à mulher um novo casamento. Os judeus não incentivavam uma vida de solteiro.
8 - Jesus corrige a teologia farisaica da época, afirmando que a base teológica correta é “o princípio” e não “Moisés”. Aqui vemos o ideal cristão de restauração de todas as coisas conforme o princípio.
9 - Como os judeus aceitavam a poligamia, especialmente no caso da escola de Hillel, o homem só adulterava se tomasse a mulher de outro homem.
10 - A postura de Jesus tem a finalidade de proteger a mulher “despedida” injustamente.
11 - Jesus está afirmando inequivocamente que um divórcio não válido implica em adultério.
12 - Tudo indica que Jesus admite algum tipo divórcio ou de anulação do casamento em Mateus 19. É preciso entender que o grego porneia, tradicionalmente traduzido por “prostituição”, é de fato “imoralidade sexual”. A visão mais conservadora sugere que o termo se referia ao que acontecera antes do casamento. O marido descobria que a mulher não era virgem, e assim anulava ao casamento. Outros até sugerem que o texto fala de consanguinidade. A posição mais comum e mais fundamentada entende que Jesus se refere ao depois, isto é, se acontecesse alguma porneia. O termo não é literalmente adultério (moicheia), usado depois no texto. O significado de porneia é amplo e pode referir-se a qualquer tipo de imoralidade sexual. A comprovação da imoralidade permitia o divórcio sem culpa por parte do ofendido.
Assim, o resumo de uma posição equilibrada sobre o assunto nos dirá que tudo deve ser feito para manter um casamento. Ainda que haja adultério, tudo deve ser feito para restaurar o casal. Mas, o divórcio pode ser permitido caso uma das partes insista em viver na “imoralidade sexual”, o que pode englobar adultério, homossexualidade, bestialidade, incesto e pedofilia. Infelizmente, o divórcio é um remédio amargo que se toma para evitar que se viva em bigamia, poligamia e promiscuidade.
Todavia, a questão se torna mais complicada diante de 1 Coríntios 7. No texto, Paulo parece indicar que a separação é compreensível, mas o recasamento é inaceitável. Será que é isso mesmo?
O texto de 1 Coríntios 7:8-16
“8 Digo, porém, aos solteiros e às viúvas: É bom que permaneçam como eu. 9 Mas, se não conseguem controlar-se, devem casar-se, pois é melhor casar-se do que ficar ardendo de desejo. 10 Aos casados dou este mandamento, não eu, mas o Senhor: Que a esposa não se separe do seu marido. 11 Mas, se o fizer, que permaneça sem se casar ou, então, reconcilie-se com o seu marido. E o marido não se divorcie da sua mulher. 12 Aos outros, eu mesmo digo isto, não o Senhor: Se um irmão tem mulher descrente, e ela se dispõe a viver com ele, não se divorcie dela. 13 E, se uma mulher tem marido descrente, e ele se dispõe a viver com ela, não se divorcie dele. 14 Pois o marido descrente é santificado por meio da mulher, e a mulher descrente é santificada por meio do marido. Se assim não fosse, seus filhos seriam impuros, mas agora são santos. 15 Todavia, se o descrente separar-se, que se separe. Em tais casos, o irmão ou a irmã não fica debaixo de servidão; Deus nos chamou para vivermos em paz. 16 Você, mulher, como sabe se salvará seu marido? Ou você, marido, como sabe se salvará sua mulher?”. (grifos meus)
Entendendo a questão
É preciso ressaltar desde o início que o contexto de 1 Coríntios é bem diferente do que vemos nos evangelhos. Sem a percepção da distinção entre os contextos não se pode entender Paulo. Em 1 Coríntios 7, o problema é o casamento misto. A pergunta feita não era sobre adultério ou traição. A questão era: o convertido a Cristo deveria abandonar seu cônjuge pagão? Com base no verso 1, parece que alguns cristãos não queriam ter relações íntimas com o cônjuge descrente. Isso revela um desejo de separação. Além disso, é importante ressaltar que o casamento misto sempre foi condenado pelos judeus. Os filhos desses casamentos eram tidos como ilegítimos. O mesmo problema aparece aqui. Alguns cristãos achavam que deveriam separar-se do seu cônjuge pagão para que seus filhos fossem “santos”.
Ao lidar com a questão, Paulo mostra-se muito prático neste capítulo (7:9). Uma razão para isso era que a lei romana era muito flexível e liberal para com o divórcio. Muitos simplesmente abandonavam o cônjuge. Além disso, muitos se confundem ao ler a frase (7:12): “eu mesmo digo isto, e não o Senhor”. Estaria Paulo dando uma mera opinião pessoal? É claro que não. A frase “não eu, mas o Senhor” apenas significa que Paulo está repetindo o que Jesus ensinou. Nada tem a ver com a opinião pessoal do apóstolo. De igual modo, quando ele afirma: “digo eu, não o Senhor”, Paulo está ensinando, com autoridade apostólica, sobre um assunto a respeito do qual Jesus não se pronunciou especificamente nos evangelhos.
No verso 10, vemos que Paulo ordena que a mulher não se separe do marido. O texto refere-se à ordem de Jesus e aplica-se contextualmente. A ordem se destina a mulheres crentes que achavam que deveriam deixar o marido descrente. Seguindo o ensino de Cristo, ela não poderia se casar de novo, pois isso seria adultério (Mt 19:9). Aqui não houve porneia. A situação é diferente de Mateus 19. No caso de imoralidade o divórcio foi permitido; no caso de um motivo injustificado, cônjuge pagão, o divórcio é proibido. Todavia, caso a convivência ficasse impossível, a separação era aceitável, mas não o recasamento. Conforme vemos no texto: “se o fizer” (v. 11), o cristão estava proibido de casar-se de novo.
Todavia, a questão é diferente nos versos de 12 a 15. O texto fala agora de cristãos que poderiam ser abandonados pelos cônjuges descrentes. A ênfase é fazer o possível para continuar casado. Mas se o descrente resolvesse separar-se, o cristão não seria culpável (v.15). A dificuldade do verso 15 é o que significa a frase “debaixo de servidão”. As sugestões são várias:
A pessoa estaria livre da lei de Cristo (Mt 19) e poderia divorciar-se;
A pessoa estaria livre para separar-se, mas não deveria escravizar-se a nenhum outro cônjuge;
A mulher estaria livre da escravidão do marido;
A mulher estaria livre pela primeira vez para escolher o seu futuro.
Entendo que a frase parece indicar possibilidade de novo casamento, caso a pessoa seja abandonada por um cônjuge descrente que definiu sua situação com outra pessoa. Finalizando, vale mencionar que a frase “chamou para a paz” parece indicar uma expressão rabínica que significaria “fazer justiça sem ser muito legalista”. Isso indicaria a flexibilidade de Paulo aqui. É importante ser normativo, sem deixar de ser terapêutico.
Luiz Sayão é professor em seminários no Brasil e nos Estados Unidos, escritor, linguista e mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP).
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Digoreste News.
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