Trump revela que escondeu gravidade da pandemia propositalmente
Presidente afirma que sabia que Covid-19 era mais mortal do que gripe comum, mas que não quis criar pânico
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, admitiu em entrevistas para o jornalista Bob Woodward que escondeu intencionalmente da população americana a gravidade do coronavírus.
As declarações do republicano foram divulgadas nesta quarta-feira (9) pelo jornal The Washington Post e pela rede de TV CNN. Ambos os veículos tiveram acesso antecipado ao novo livro de Woodward, “Rage” (raiva), que tem lançamento programado para a próxima semana.
Woodward é um dos mais respeitados jornalistas da história americana, conhecido principalmente por ter revelado, ao lado de Carl Bernstein, o escândalo de Watergate.
A série de matérias sobre o caso feita pela dupla para o Washington Post entre 1972 e 1974 acabou por levar o então presidente americano, Richard Nixon, à renúncia.
Na obra a ser publicada, o veterano repórter diz ter conversado com o presidente no dia 7 de fevereiro. Dez dias antes, Trump tinha sido informado por seus assessores que a situação da crise gerada pela Covid-19 era gravíssima, revela o livro.
“Você apenas respira o ar, e é assim que [o vírus] se dissemina”, disse o presidente a Woodward. “Então isso é muito complicado. Isso é muito delicado. É também algo muito mais mortal do que uma gripe forte. Isso é mortal”, completou Trump na ligação —o aúdio do trecho foi divulgado pelos dois veículos.
Na mesma época, porém, Trump afirmava em público que a pandemia não era tão grave e que a Covid-19 não era mais perigosa que a gripe comum. Em 26 de fevereiro, em viagem à Índia, o republicano disse que o número de novos casos de coronavírus nos EUA "em poucos dias vão cair para próximo de zero", mesmo sabendo que a situação ainda ficaria mais grave.
Mais de um mês depois da entrevista anterior com Woodward, em 19 de março, Trump e o jornalista voltaram a conversar. Na ligação, o presidente revelou que a situação era mais grave do que pensava.
“Agora está sendo revelado que [atinge] não apenas pessoas idosas, Bob. Só hoje e ontem alguns fatos vieram à tona. Não são só idosos”, disse Trump sobre o alcance da Covid-19. “Pessoas jovens também, muitas pessoas jovens”, completou o líder americano.
Na sequência do diálogo, o republicano defendeu suas ações. “Eu sempre quis minimizar [a pandemia]”, disse Trump, segundo o livro. “Eu ainda prefiro minimizar, porque não quero criar pânico.”
Foi só no fim de março que ele começou a mudar de tom sobre a pandemia e passou a alertar publicamente a gravidade da situação, embora por vezes de maneira errática.
Woordward ainda revela no livro que no dia 28 de janeiro o republicano teve uma reunião no Salão Oval da Casa Branca para debater a situação do coronavírus.
O subconselheiro de segurança nacional, Matthew Pottinger, disse no encontro que informações vindas da China —então epicentro da pandemia— indicavam que o coronavírus era uma emergência tão grave quanto a gripe espanhola, que deixou cerca de 50 milhões de mortos em 1918.
“Essa será a maior ameaça à segurança nacional que você vai enfrentar em sua Presidência. Isso será a coisa mais difícil que você vai enfrentar”, disse a Trump o conselheiro de segurança nacional, Robert O’Brien, de acordo com o livro, durante a reunião.
A obra também revela que as principais autoridades de saúde dos Estados Unidos estavam preocupadas com as ações de Trump no combate à pandemia.
Woodward afirma que Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e um dos principais imunologistas do país, chegou a classificar a gestão do presidente de "sem direção".
Segundo o médico, durante as reuniões para tratar o coronavírus o republicano parecia estar "em outro canal" e era incapaz de se concentrar —só pensava na reeleição.
Numa reunião na Casa Branca, Fauci teria afirmado na frente do republicano que ele tinha que parar de dar declarações mentirosas ou enganosas sobre o coronavírus. "Nós não podemos deixar o presidente ficar vulnerável, falando coisas que vão voltar para assombrá-lo", disse o imunologista, afirma o livro.
Para tentar melhorar a situação, o senador republicano Lindsey Graham, um aliado de Trump, chegou a pedir que o ex-presidente George W. Bush (2001-2009), um desafeto, conversasse com o atual ocupante da Casa Branca sobre os esforços internacionais para a obtenção de uma vacina.
Bush, porém, recusou o pedido porque acreditava que Trump deturparia suas palavras, escreve Woodward. Em outro trecho da obra, o atual presidente chama o antecessor republicano de um "idiota estúpido".
Após a divulgação das declarações presentes no livro, o adversário de Trump na disputa pela Presidência nas eleições de novembro, o democrata Joe Biden, criticou o republicano.
"Ele sabia e minimizou de propósito. Pior, ele mentiu para o povo americano", disse ele em um discurso no estado de Michigan nesta quarta. "E enquanto esta doença mortal atingiu nossa nação, ele falhou em fazer seu trabalho —de propósito. Foi uma traição de vida ou morte ao povo americano. É um abandono do dever, uma desgraça", completou o democrata.
Trump também costumava criticar seu antecessor direto no cargo, o democrata Barack Obama (2009-2017) —de quem Biden foi vice-presidente. Para o republicano, o primeiro presidente negro da história americana não era inteligente, era supervalorizado e não era um bom orador.
Woodward disse que entrevistou Trump 18 vezes durante a realização da obra, incluindo as ligações telefônicas. Todas as conversas foram gravadas com autorização do presidente. Ele também conversou com dezenas de pessoas que trabalharam no governo.
Na última da série de entrevistas, em 21 de julho, o presidente afirmou que não tinha responsabilidade sobre o que aconteceu e voltou a culpar Pequim pela crise sanitária. "O vírus não tem nada a ver comigo. Não é minha culpa. É [culpa] da China deixar o vírus escapar."
Em uma outra conversa, Trump revelou ao repórter que seu governo está criando um novo sistema secreto de armas nucleares —o jornalista depois confirmou a informação com uma fonte militar anônima.
Outro tópico presente nas entrevistas foi o dos protestos contra o racismo e a violência policial que tomaram os Estados Unidos a partir do fim de maio, após a morte de George Floyd, ex-segurança negro asfixiado por um policial branco em Minneapolis.
Quando Woodward diz em uma conversa que ambos, ele próprio e Trump, são homens brancos privelegiados, o presidente adota um tom de chacota para responder.
"Não. Você realmente tomou um suco, não é? Apenas escute o que você falou. Uau. Eu realmente não sinto isso", diz o republicano no diálogo.
“Não. Você realmente tomou um suco, não é? Apenas escute o que você falou. Uau. Eu realmente não sinto isso", diz o republicano no diálogo.
Em inglês, a expressão “tomar um suco” (“drink the Kool-Aid”) é usada de maneira irônica para indicar uma mudança de posição devido a pressão popular sobre um assunto. A frase faz referência ao suicídio coletivo orquestrado por Jim Jones em 1978, quando o líder de uma seita ordenou a seus seguidores que tomassem um refresco envenenado —918 pessoas morreram no episódio.
Na sequência do diálogo com Woodward, Trump volta a afirmar que foi o presidente que mais ajudou os negros desde Abraham Lincoln, responsável pelo fim da escravidão, e que não entende por que tem tão pouco apoio dentro da minoria.
O jornalista afirma ainda que Trump por muitas vezes se exaltava quando via democratas não brancos. Ele então narra uma cena na qual o presidente assiste à TV.
Quando imagens da senadora Kamala Harris (negra e candidata a vice na chapa de Biden) e da deputada Alexandria Ocasio-Cortez (de ascendência latina) aparecem, o republicano aponta para a tela e, aos gritos, afirma que as duas o odeiam.
O livro inclui ainda detalhes da cúpula do governo, incluindo uma série de críticas ao presidente feita por antigos auxiliares. A lista inclui o ex-secretário de Defesa James Mattis, o ex-secretário de Estado Rex Tillerson e o ex-diretor de inteligência nacional Dan Coats.
Mattis, diz Woodward, chegou a ir a uma igreja rezar pelo futuro dos EUA e classificou o presidente como perigoso e impróprio para o cargo.
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