Epidemias de Mato Grosso: A Varíola de 1876
ARTIGO
Totó Onça, sineiro afamado de Cuiabá nosso “corcunda de Notre Dame pantaneiro” tocou por quatro minutos sem parar os sinos da Igreja Sr. dos Passos na madrugada de terça-feira, acordando todos moradores da cidade, em especial os da rua de baixo, Galdino Pimentel, coração de Cuiabá. O badalar e o repique pausado dos sinos anunciavam a morte de alguém, quem seria dessa vez?!
Era dia 23 de julho de 1867, havia falecido a primeira vítima de varíola, um homem de 36 anos chamado Januário, o anjo da morte chegara em Cuiabá. A historiadora Marlene Menezes Vilela que pesquisou a varíola no seu mestrado no título da obra nos apresenta a exata dimensão escatológica da epidemia: Quando o dedo de Deus apontou a nossa província ao Anjo da Morte: A Ocasião da Varíola em Mato Grosso, 1867 (disponível na internet).
A partir dessa data, nos próximos 3 meses seguintes do ano de 1867 as badaladas dos sinos nas cinco igrejas antigas da cidade (Matriz, São Benedito, Boa Morte, São Gonçalo e Nosso Senhor dos Passos) se multiplicaram e dia após dia a cidade amanhecia aterrorizada com o número de mortes. Até que a Igreja Católica determinou que diminuíssem o tempo das badaladas aos sineiros e mais tarde a proibição definitiva dos toques pra evitar pânico na população! Os sinos sagrados que regulavam o cotidiano da velha Cuiabá oitocentista viraram a anunciação da morte.
Na mentalidade católica da época acreditava-se que Cuiabá sofria um castigo divino por ter se insurgido na Rusga contra os portugueses e por isso foi punida por Deus, assim como na imagem bíblica do fim dos tempos e a chegada do anjo da morte. A historiadora Luiza Volpato em seu livro Cativos do Sertão denominou a epidemia de “Apocalipse Cuiabano”.
A epidemia teria vindo com os combatentes da Guerra do Paraguai 1864-1870 da cidade de Corumbá pela navegação a vapor, pois Mato Grosso enviou 2 mil homens entre militares e voluntários da pátria pra reconquistar a cidade invadida pelos paraguaios.
A capital na época possuía 13 mil habitantes e com o impacto da doença, 2 mil pessoas se evadiram para zona rural afim de respirar ar puro e fugir do malefício cruel e os outros 6.500 habitantes, 50% da população foi exterminada pela varíola, principalmente pobres e escravos. Foi uma carnificina que durou 3 meses e deixou muitas marcas de triste lembrança entre os cuiabanos: agosto, setembro e outubro de 1867.
Se hoje em dia sabemos que a transmissão do COVID-19 ocorre através do contato físico ou pela saliva, naquela época acreditava-se que a doença poderia se propagar pelo ar pútrido, pestilento chamado de miasmas, respirar se tornou perigoso. Nesse caso, cadáveres, cortejos fúnebres, velórios, bichos mortos nas ruas da cidade podiam ser vetores perigosos de contagio, sendo por isso proibidos pelas autoridades locais.
Para tentar conter o surto, o governo proibiu a realização do ritual de enterros na cidade pra evitar contaminações por miasmas: preparação do corpo do defunto, velórios, missas de corpo presente e sepultamentos. Os enterros passaram para o período noturno como medida sanitária pra combater a propagação da epidemia e evitar pânico nas ruas com os inúmeros cortejos funerais. Os corpos eram transportados aos montes, empilhados numa carroça fúnebre que seguia a seguinte rota apanhando corpos: descia a rua Cândido Mariano, virava a direita na Batista das Neves depois 24 de Outubro (sentido) rua Cmdte Costa e seguia descendo (sentido contrário da direção atual) até a altura da rua Cel. Benedito Leite -Cruz Preta em direção ao Cemitério Cai Cai.
O Inspetor Sanitário com sua equipe fazia vistorias constantes nas casas pra averiguar as condições sanitárias de limpeza e higiene, podendo inclusive interditar os imóveis caso julgasse necessário. As roupas e utensílios de pacientes tratados em casa, deveriam ser lavadas diariamente com água, sal grosso e cal e depois de morto esses pertences deveriam ser queimados. Else de Araújo Cavalcante analisou com propriedade essa momento de disciplina rígida e controle sanitário no livro: Imagens de uma Epidemia Saber Médico, Urbanização e Varíola na Província de Mato Grosso.
Aromas de essências como a alfazema, cânfora e almíscar viraram remédios poderosos contra os miasmas, seus cheiros era sentido nas casas e nas ruas de Cuiabá. Nas igrejas os acólitos balançavam os turíbulos incessantemente nas missas para limpar os ambientes e afastar os maus fluídos. No desespero de higienizar a cidade o governo determinou ao exército que disparasse tiros de canhão nos 4 cantos de Cuiabá para a fumaça da pólvora descontaminar o ambiente, mas os estouros fizeram foi tumultuar o povo assustado que pensou se tratar das tropas paraguaias chegando nas imediações.
Como medida emergencial o governo resolveu construir às pressas um improvisado cemitério distante do perímetro urbano destinados as vítimas da bexiga, denominado Nossa Senhora do Carmo mas ficou conhecido mesmo pelo apelido bizarro de Cemitério do Cai-Cai. Naquela época não havia tempo, nem gente disponível e disposto para trasladar os defuntos e realizar as dezenas de sepultamentos diários por pavor da contaminação e coube a polícia assumir esse papel. Como eram muitos os cadáveres, quase todos eram enterrados em covas rasas e coletivas ou jogados morro abaixo a esmo, alguns até mortos vivos agonizando. Já outros corpos nem no cemitério chegava, ficavam em decomposição nas casas esvaziadas e ruas gerando um cheiro nauseabundo. Quase um filme de terror!
O historiador Franscisco Alexandre Ferreira Mendes nos conta a história de um sobrevivente chmado Manuel de tal que teria sido jogado ainda vivo no cemitério e estava prestes a ser queimado como os demais corpos e de súbito teria se levantado, conseguindo se salvar com vida e por essa razão levou o fúnebre apelido Manuel da Cova. Dunga Rodrigues no livro Lendas de Mato Grosso narra que depois da epidemia era possível ouvir uma carroça rangendo as rodas nas madrugadas escuras nas ruas de Cuiabá com moribundos gemendo em cima, principalmente nas proximidades da atual praça Manuel Murtinho, localizada na avenida São Sebastião, local onde era o tenebroso cemitério. Na sabedoria popular isso seria uma alma penada; um mal agouro ou uma premonição de morte.
O governador Couto Magalhães tomou outras medidas consideradas tímidas na época para tentar estancar o pandemônio da epidemia, iniciou a construção de um anexo na Santa Casa de Misericórdia, que nunca terminou; montou um hospital de campanha no Coxipó que servia de quarentena e para tratamento dos militares e definiu um local para expurgo e isolamento dos indigentes, pobres e escravos contaminados no Hospital de São João dos Lázaros, inaugurado em 1816.
Joaquim Murtinho nosso melhor informante dessa epidemia no seu livro Notícia sobre a província de Mato Grosso (disponível na internet) responsabilizou a enorme mortandade por falta de assistência do então governador Couto Magalhães, 1867-1868. Nessa obra prima, encontrei o mais contundente relato do que foi a epidemia de varíola em Mato Grosso, a 153 anos atrás:
“Não havendo pessoal suficiente para abrir valas que pudessem conter centenas de cadáveres, sobrepunham alguns aos outros e lançavam lhes fogo que os não queimavam, mas assava, para depois servirem de pasto aos corvos, aos porcos e aos cães, que cevavam-se nesse estranho banquete de carne humana.(...) Velhos-esmolavam quem lhes enterrasse os filhos, para que os não os vissem pasto aos vermes dentro de suas próprias casas. Se algum dia o Sr. Dr. Couto de Magalhães ler essas páginas, perdoe a dor de um pai; e se sentir no coração o espicaçar pelo remorso, tenha fé em Deus e no perdão das suas vítimas. Não tente justificar-se! Os mortos sepultados no Cai Cai, quase fantasmas ameaçadores, far-lhe-ão morrer nos lábios as palavras, e apontarão a Sua Excia. milhares de túmulos onde em letras negras, está escrita a história nefanda da sua administração fatal!”.
No próximo artigo tratarei da Gripe Espanhola em Mato Grosso de 1919.
Suelme Fernandes é mestre em História pela UFMT -
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